segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Todo Mundo é Pródigo II

Desperdiçamos.
É bem isto que fazemos.
De mãos livres, versos brancos, métrica desregrada
Desregradamente
Descoordenadamente
Desregaladamente...
Desperdiçamos.

Os tempos nos fazem saber,
As vozes nos fazem saber...
Os porcos nos fazem saber:
Desperdiçamos.

E quão infindo o amor
E quão grata a esperança
E quão insondável a entrega:
O Pai se dá ao filho, o Pai se dá com o filho
Vai com ele, com seu nome, com seu sangue, com sua herança!

Dilapidado é o Pai,
É rasgado e vendido
Mercantilizado nas trocas espúrias –
Trinta moedas de prata num reino distante –
Seus valores tão raros
Seus princípios tão caros
Foram todos trocados
Por Barrabás.

Compramos um campo de sangue!

Numa economia cujo câmbio
Não era nosso
Uma Constituição
Não constituída por nós
Com Poderes
Que jamais seriam nossa voz
Um Parlamento
Que nunca visitamos.

Não era nossa aquela terra
E numa língua forasteira,
Numa cultura estrangeira
Num sistema que de tão iníquo,
Tão estranho:
Dissolvemos nosso patrimônio.

Pérolas que fomos,
Compradas a preço de sangue!

Desfeita sua herança,
Desperdiçamos

Os sonhos prenhes de vida
Um aborto espontâneo do futuro
Desplanejado
Malbaratado
Espontaneamente,
Nos atiramos aos porcos.

De mãos atadas, versos negros, métrica desgraçada
Desesperadamente
Dissolutamente
Impiedosamente...
Somos pródigos
Em não ser nada.

A herança requisitada
Ao ainda vivo Patriarca
Declara-lhe à voz amarga
Plena de impiedade:
“Não fazes mais parte da minha vida”.

No meu projeto
(Abortado) de futuro,
Não cabe Você.

No meu trajeto
Cujos rumos são o mundo
Meus passos não comportam Você
Prefiro o não-ser,
Prefiro o ser nada.

E toda herança afiliada
Cada dom imerecido,
Cada dita habilidade
Todo talento dado,
Dilapidado, pois que enterrado
Declara com impiedade
Ao Patriarca sempre vivo
Nossa infidelidade.

E quão terrível o desamor
E quão triste o desespero
E quão inoficioso o desperdício
De perder-se no ofício
De dar tudo a cabo,
Dar a tudo fim, afinal –
Fim à dignidade
Fim à condição
De nossa frágil e atentada humanidade
E nos perdermos,
Na luta corporal com os porcos.
No embate visceral
Com nossa prodigalidade.

E quão estranhável
Que da condição desumana –
A perdição miserável –,
Houvesse um caminho afastado
À misericórdia entranhável
Por que fomos resgatados.

Que loucura pensar
Ser possível o retorno
Ainda que árduo, difícil e alongado
De uma terra tão distante
Em que o caos,
A crise e a fome
Mostraram a nós a absurda distância

Entre a aparência da liberdade,
Rimas brancas, versos livres
Todo o mundo no poema
Espremido entre as estrofes
De um estribilho desafinado
Escondendo a real prisão,
Negra e descompassada
De um mundo desentoado
Que desprezou a filiação
Com quem que poderia dar
A certeza pura, plena
Da salvação que regenera
Liberta, e traz por certa
A eternidade no poema.

Glória Cruz,

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